Embarcações tradicionais brasileiras poderão receber proteção do Iphan
Um contexto de grande vulnerabilidade guarda os últimos exemplares de embarcações que faziam parte da rotina do país, seja na pesca ou no comércio e do transporte de pessoas e mercadorias. Antigamente, numerosas e corriqueiras, hoje são alguns exemplares que, graças à dedicação voluntário de pessoas e organizações, são capazes de registrar os chamados bons tempos da navegação no Brasil. Atualmente, essas embarcações, apesar de frágeis, ainda guardam excpecionalidades tipológicas e construtivas, além de forte significado simbólico e afetivo local; fazem parte das paisagens e são, muitas vezes, ícones importantes da cultura regional.
Esses são alguns dos pontos que motivaram o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional ? Iphan a apresentar ao Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural a proposta de tombamento de parte do Patrimônio Naval Brasileiro, com destaques para o acervo do Museu Nacional do Mar, na cidade de São Francisco do Sul, em Santa Catarina, da Canoa de Tolda Luzitânia, da Sociedade Sócio-Ambiental do Baixo São Francisco, em Sergipe, da Canoa Costeira de nome Dinamar, da Baía de São Marcos, no Maranhão, do Saveiro de Vela de Içar de nome Sombra da Luz, do Recôncavo Baiano, e da Canoa de Pranchão do Rio Grande, de nome Tradição, do Rio Grande do Sul. A reunião do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural será nos próximos dias 9 e 10 de dezembro, no edifício Palácio Gustavo Capanema, à Rua da Imprensa, 16, no centro do Rio de Janeiro.
De acordo com o Departamento de Patrimônio Material e Fiscalização ? Depam/Iphan,
há 20 anos a proteção de barcos ou tipologias de embarcações tradicionais vem sendo realizada como política de preservação do patrimônio cultural em vários países, especialmente na Europa. A proteção de barcos históricos e embarcações tradicionais é comum em Portugal, Espanha, França, Itália Inglaterra, historicamente ligados à navegação.
Na França, por exemplo, são 110 as embarcações tombadas como monumentos históricos nacionais, entre barcos de pesca, de lazer, de passageiros, de combate, de comércio e transporte de mercadorias e também embarcações científicas. Outro exemplo são as famosas gôndolas de Veneza, do século XI, e que ainda hoje fazem parte da paisagem e da cultura da cidade italiana. O Brasil, apesar de sua riqueza e diversidade de embarcações, ainda não possui um exemplar sob proteção federal. Somente agora o país desperta para a importância que tem o seu patrimônio naval e a necessidade de conserva-lo para as gerações futuras.
Os processos de tombamento de embarcações tradicionais no Brasil
Em 2008, o Iphan lançou o projeto Barcos do Brasil cujo objetivo central é a preservação e a valorização do patrimônio naval brasileiro por meio de ações de proteção de embarcações, paisagens e acervos históricos e fomento às atividades relacionadas com os barcos tradicionais ? pesca, culinária, artesanato, festejos, transporte de pessoas e mercadorias e outras manifestações. Os parceiros institucionais são os ministérios da Pesca e Aquicultura, do Meio Ambiente, da Ciência e Tecnologia, das Cidades, da Educação, do Turismo, da Defesa, a Secretaria Especial de Portos e a Representação da UNESCO no Brasil.
A partir da identificação de localidades e embarcações singulares, muitas vezes em risco de desaparecimento ou em contextos vulneráveis, o Iphan busca estimular o monitoramento de alguns barcos tradicionais, com o intuito de acompanhar a evolução de sua utilização econômica, seu estado de conservação e preservação e evitar seu desaparecimento. É justamente a partir do inventário de varredura do patrimônio naval e dos cadastramentos e diagnósticos quantitativos e qualitativos das embarcações e dos contextos navais de maior relevância e de maior vulnerabilidade, realizado pelo projeto Barcos do Brasil, que o Iphan apresenta os primeiros processos de tombamentos de embarcações tradicionais brasileiras.
O Museu Nacional do Mar - SC
Os primeiros tombamentos do patrimônio naval brasileiro também coincidem com contextos onde já existe alguma iniciativa em prol da preservação das embarcações. Assim, nesta primeira etapa, o Iphan inclui também a proposta de proteção federal para o Museu Nacional do Mar, na cidade de São Francisco do Sul, em Santa Catarina, por seu valor e importância na preservação da memória do patrimônio naval e da cultura marinha e ribeirinha brasileira como um todo.
O Museu Nacional do Mar, fundado em 1992, confunde-se com sua própria história. A ideia de montar em São Francisco do Sul, nos antigos galpões da Companhia. Hoepcke de navegação, um museu que pudesse reunir a história do patrimônio naval brasileiro, preservando-o para gerações futuras e inserindo-o como fator de valorização dos contextos navais tradicionais do Brasil, partiu do então diretor da Fundação Catarinense de Cultura - FCC, Dalmo Vieira Filho, hoje, diretor do Depam/Iphan. O Museu Nacional do Mar passou a ser um fator de requalificação urbana de São Francisco do Sul, praticamente um valor agregado da cidade histórica tombada pelo Iphan em meados da década de 1980 e que enfrentava uma grave crise econômica. A partir de 2003, com investimentos do Programa Monumenta, o Museu foi ampliado com a compra da porção que faltava dos galpões da Hoepcke.
Novos itens foram incorporados ao acervo, que já se constituía em uma excepcionalidade no contexto nacional e latino-americano. O acervo do Museu Nacional do Mar é composto hoje, por 81 embarcações em tamanho natural, 104 modelos navais, 102 peças de artesanato, três maquetes diorama, oito equipamentos e acervo documental e bibliográfico da Biblioteca Kelvin Duarte, formada por mais de dois mil volumes, incluindo obras raras, fotografias, desenhos, cartas náuticas, manuscritos, croquis e outros registros inéditos sobre o patrimônio naval brasileiro e do mundo.
A Canoa de Tolda Luzitânia - SE
A Luzitânia é um dos três últimos exemplares das canoas de tolda do Rio São Francisco. Adquirida, em 1999 pela Sociedade Sócio-Ambiental do Baixo São Francisco, a canoa foi completamente restaurada e voltou a navegar. Apesar de a restauração da embarcação apresentar materiais diversos do original, de acordo com parecer do Depam/Iphan, para quem a vê navegando no São Francisco, para a população da região, a sua forma continua repleta de significados, o que consolida a proposta de tombamento Arqueológico, Paisagístico e Etnográfico.
A canoa de tolda é o maior símbolo do Rio São Francisco e só existe no Brasil. As toldas originais eram grandes embarcações, mas a brasileira possui somente 16 metros de casco. É perfeitamente adaptada para descer o rio, a favor do vento, com o pano aberto. É composta de leme, tábua de bolina, moitão e a tolda que servia para abrigo da alimentação e dos canoeiros. A Luzitânia, que na época do cangaço se chamava Rio Branco, teve grande importância econômica no transporte de mercadorias em toda a região do Baixo São Francisco.
O Saveiro de Vela de Içar Sombra da Lua - BA
O saveiro certamente é a embarcação mais conhecida no contexto do patrimônio naval. Embarcação típica baiana, cantada e declamada, na poesia de Jorge Amado, na música de Dorival Caymmi, retratado nas fotografias de Pierre Verger, nas pinturas de Carybé, O pedido de tombamento do saveiro Sombra da Lua foi feito em 20 de outubro de 2010, mesmo dia em que o Iphan concedeu à Associação Viva Saveiro o Prêmio Rodrigo Melo Franco de Andrade, por sua atuação em prol da preservação dos últimos saveiros da Bahia. O Sombra de Lua é um dos últimos saveiros que preservam, na íntegra, as características originais de um saveiro de vela de içar de um mastro. Com tijupá e popa torada, possui 12,5 metros de comprimento por 4 de largura. De acordo com a Associação Viva Saveiro, foi construído pelo carpinteiro naval José Simão provavelmente em 1923.
Em 2006, a embarcação pertencia a Mestre Bartô, que estava com grandes dificuldades em mantê-la. A Associação comprou o saveiro, realizou a completa restauração e o devolveu ao Mestre. Atualmente, o Sombra da Lua tem como abrigo principal o Porto da Pedra, em Maragogipe, e é o único saveiro que ainda atraca na rampa do Mercado Modelo, levando produtos do Recôncavo Baiano para Salvador. Atraca também na Feira de São Joaquim de onde traz carregamento de cerâmica e caxixi de Maragogipinho para Salvador. Por seus valores históricos, artísticos e etnográficos, o Iphan é favorável ao tombamento do Saveiro Sombra da Lua que, ao se tornar o primeiro e único exemplar protegido de embarcação desta tipologia, passará a representar todos os últimos saveiros da Bahia.
A Canoa Costeira Dinamar - MA
Com a realização de inventários do patrimônio naval de vários estados, tendo em vista a excepcionalidade das embarcações e também de risco de desaparecimento, o Iphan vem obtendo dados detalhados sobre algumas tipologias de barcos tradicionais e suas condições atuais de subsistência. No Maranhão, com a contribuição do Estaleiro Escola, foram identificados e cadastrados, em 2009, 21 das últimas canoas costeiras em atividade na Baía de São Marcos. A pesquisa estima que existam entre 30 e 40 canoas em atividade, sendo 27 em melhor estado de preservação. Uma delas é a canoa costeira Dinamar. A partir de ação contratada pelo Iphan e com recursos do Ministério da Pesca e Aquicultura, o Estaleiro Escola do Maranhão restaurou a canoa costeira Dinamar, escolhida entre as cadastradas em função do estado precário de conservação e das poucas condições econômicas do proprietário. Assim como no caso baiano, a proposta de tombamento da primeira canoa costeira busca contribuir para sua preservação e valorização.
Os cúteres ou canoas costeiras são um dos maiores barcos tradicionais do Brasil. O convés é fechado, arrematado por cabine rasa. Na proa há um alongado gurupés (pau de giba) e a bita (frade), que usualmente apresenta forma de cabeça humana. O formato da vela, com cores vivas, é dado pela forte inclinação da carangueja, que, visualmente, converte sua forma quadrada em triangular. Quando navegam, essas embarcações impressionam: inclinam-se suavemente com o vento, enquanto colorem a Baía de São Marcos com as diferentes tonalidades de seus cascos e velas. Ainda hoje é possível encontrar exemplares que possuem o fundo do casco constituído por uma peça única, acrescida de outras tábuas que dão a forma final ao modelo, porém esta prática foi abolida por escassez de árvores, junto à costa, de tamanho e qualidade adequados.
A Canoa de Pranchão Tradição - RS
Estudos do Complexo de Museus da Universidade Federal do Rio Grande ? FURG reconhecem a canoa de pranchão como o único modelo de embarcação tradicional propriamente desenvolvido no Rio Grande.
Seu casco era construído com 48 a 50 pranchões de cedro, falquejados a enxó e fixados simetricamente uns aos outros com pregos e cavilhas sobre um esparso cavername com 3 cavernas mestras. As pranchas eram recortadas e armadas como em um quebra-cabeça, para garantir a vedação entre as diversas partes que formavam a canoa. Podiam ter uma, duas ou três velas ? o foque, o traquete e a mezena ? tingidas com a tintura roxa extraída da casca da capororoca, uma pequena árvore típica da região do estuário. As velas eram conhecidas como ?pano poveiro? e chegaram ao Rio Grande no final do século XIX, se integrou à paisagem local, adaptadas por pescadores portugueses às necessidades da navegação no estuário da Lagoa dos Patos.
Nas décadas de 1930 e 1940, alguns patrões experimentaram adaptar motores de popa em suas canoas, iniciando um processo de mudança sociocultural.
Assim como as outras embarcações em processo de proteção, a canoa de pranchão sobrevive a partir de ação institucional forte e eficaz, que garantiu a sobrevivência das últimas quatro centenárias canoas de pranchão de Rio Grande, todas de propriedade do Museu Náutico e restauradas pelo construtor naval José Vernetti: três navegando e uma em exposição no seco. A canoa Tradição foi construída em 1885 e possui com 9,3 metros de comprimento. É um exemplar entre menos de uma dezena de remanescentes das mais de 500 embarcações que navegavam em meados do século XIX. A partir do tombamento, a Tradição passará a representá-las no rol das embarcações tradicionais brasileiras protegidas pelo Iphan.
O Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural
O Conselho que avalia os processos de tombamento e registro, presidido pelo presidente do Iphan, Luiz Fernando de Almeida, é formado por especialistas de diversas áreas, como cultura, turismo, arquitetura e arqueologia. Ao todo, são 22 conselheiros de instituições como Ministério do Turismo, Instituto dos Arquitetos do Brasil, Sociedade de Arqueologia Brasileira, Ministério da Educação, Sociedade Brasileira de Antropologia e Instituto Brasileiro de Museus ? Ibram e da sociedade civil.
Além do Patrimônio Naval Brasileiro, também faz parte da pauta da reunião do Conselho Consultivo a proposta de registro como Patrimônio Cultural da Festa de Sant?Ana do Caicó, e do tombamento do centro histórico de Natal, no Rio Grande do Norte. Os conselheiros avaliarão também a possibilidade de tombamento do Conjunto Histórico do Município de Paracatu, em Minas Gerais; da Igreja Positivista, na cidade do Rio de Janeiro; do Conjunto Urbanístico e Paisagístico do Município de Cáceres, em Mato Grosso, e do Centro Histórico de São Luiz do Paraitinga, em São Paulo
Serviço: Reunião do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural
Data: 9 e 10 de dezembro de 2010
Local: Palácio Gustavo Capanema
Rua da Imprensa, 16 ? Centro ? Rio de Janeiro - RJ
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