Estudo: Bolsa Família e Renda Básica de Cidadania: um passo em falso

Em 8 de janeiro de 2004, o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou a lei 10.835. No dia seguinte, fez o mesmo com a lei de número subsequente, a 10.836. Ainda que tratem de assuntos semelhantes – transferência de renda –, ambas criaram dois sistemas de política social que, até agora, não dão sinais de que vão convergir. Com a primeira lei, entrou em vigor a renda básica de cidadania. A segunda deu início ao Bolsa Família.

Elas “representam dois modelos diferentes no marco legal do país, sem mecanismos efetivos de transição para assegurar a implementação de fato da lei da renda mínima cidadã”, aponta o estudo Bolsa Família e Renda Básica de Cidadania: um passo em falso, publicado pelo CIP-CI (Centro Internacional de Políticas para o Crescimento Inclusivo, um órgão do PNUD em parceria com o governo brasileiro.

O texto afirma que, apesar de o Bolsa Família ter se expandido e atingir mais de 12 milhões de domicílios — a ponto de ser o programa de transferência direta de renda com maior número de beneficiários do país —, não parece haver planos de que a iniciativa se converta na renda básica de cidadania, também conhecida como renda mínima.

O carro-chefe da política social brasileira tem como características básicas ter foco definido (é destinado a lares com renda familiar per capita de até R$ 140 ao mês), levar em conta o domicílio e impor requisitos para que os beneficiários recebam a Bolsa (matricular filho na escola, manter em dia a carteira de vacinação, comparecer a consultas pré-natais).

Já a renda básica de cidadania é universal (seria concedida a todos os brasileiros, independentemente de seu nível socioeconômico), leva em conta o indivíduo (é um direito pessoal, não da família) e não prevê condicionantes. O valor é o mesmo para todos, e deve ser “o suficiente para atender às despesas mínimas de cada pessoa com alimentação, educação e saúde, considerando para isso o grau de desenvolvimento do país e as possibilidades orçamentárias”, como estabelece a lei de 8 de janeiro de 2004.

O Bolsa Família, mostra o estudo, tem suas raízes na década de 90, quando surgiram propostas e políticas locais para destinar dinheiro a famílias pobres, desde que cumprissem alguns requisitos (em geral, ligado a educação). Vindas de diferentes correntes ideológicas, as medidas viraram programa federal em 1997, quando foi criado o Programa de Garantia de Renda Mínima Vinculada à Educação. Começou tímido (abrangia 150 municípios), mas encorpou-se em 2000 (1.373 municípios). Debates na sociedade e no Congresso transformaram-no no Bolsa Escola, administrado pelo Ministério da educação. Pouco depois, foi criado o Bolsa Alimentação, administrado pelo Ministério da Saúde e voltado a famílias com grávidas ou com crianças pequenas.

No início do governo Lula, houve debates sobre modelos diferentes, mas optou-se por continuar com a transferência condicionada de renda, o sistema mais defendido nos círculos políticos e acadêmicos. “A hegemonia era sustentada por argumentos de que este [modelo] era mais eficiente e tinha menores custos de transação. Como resultado, não havia quase nenhum espaço para um tipo de programa diferente”, escrevem os pesquisadores Tatiana Britto, do Senado e da Universidade de Brasília, e Fábio Veras Soares,do CIP-CI.

O que foi entrou em vigor em 9 de janeiro de 2004, com o Bolsa Família, foi uma unificação dos vários programas de transferência condicionada de renda já existentes, de modo a evitar sobreposições.

A renda básica teve uma versão inicial elaborada pelo senador Eduardo Suplicy (PT-SP) e aprovada pelo Senado em dezembro de 1991, mas estacionou na Câmara. O parlamentar reformulou o projeto e o reapresentou em 2001. O projeto foi modificado no Senado, que estabeleceu que sua implementação se daria em etapas (privilegiando primeiro os mais necessitados) e respeitando a Lei de Responsabilidade Fiscal. Essas alterações foram mantidas na lei sancionada no início de 2004. Ainda que universal, a renda básica começaria a ser implementada aos poucos, com início em 2005, priorizando os mais pobres.

“Ainda que a legislação que criou o Bolsa Família não faça referência direta a renda básica, o programa expandiu-se rapidamente desde 2004 e se tornou a pedra fundamental na agenda antipobreza do governo federal”, escrevem os autores. Houve alterações no programa, como um piso para quem está em situação de pobreza extrema e a garantia de que a família recebe o benefício por ao menos dois anos. No entanto, “a possibilidade de transformar o Bolsa Família em cobertura universal (independentemente no nível socioeconômico) não parece estar sendo considerada”.

Ao contrário: sempre que há sinais de que o programa se expande muito e afrouxa a fiscalização dos condicionantes, é visto como paternalista, observa o estudo. Em resposta a críticas de vários setores e da imprensa, o programa tem aprimorado suas ferramentas de monitoramento e seu mecanismo de fiscalização.

Para os autores, ainda que as condicionalidades tenham lógica (prevenir a pobreza futura melhorando o capital humano dos pobres), a necessidade de que haja mecanismo desse tipo é controversa. De qualquer modo, “está ligada a visões políticas que permeiam a própria estruturação do Bolsa Família. Reflete uma visão de que não se deve dar nada aos pobres sem pedir algo em troca”, avaliam os pesquisadores.

O fosso entre os dois modelos de transferência de renda se reflete nas proposições dos congressistas. Os autores detectaram que, desde que o Bolsa Família foi criado, houve 34 propostas de mudanças no programa analisadas pela Câmara ou pelo Senado. Oito já foram rejeitas, e 26 permanecem em debate. Ainda que provenham se linhagens divergentes (12 partidos), nenhuma faz referencia a renda mínima.