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Henry Uliano Quaresma é CEO da Brasil Business Partners e membro de conselhos de empresas e entidades empresariais. Autor de artigos e livros de referência, destaca-se a obra "O Fator China: Oportunidades e Desafios" (Fotos: Divulgação)
Na China, onde as novidades surgem com a velocidade das bicicletas elétricas de Hangzhou, o 11 de novembro se tornou a data que melhor simboliza a união entre escala, tecnologia e ousadia comercial. O que nasceu como uma brincadeira entre estudantes evoluiu para a maior operação de vendas já registrada no planeta. Hoje, o Duplo 11 não é apenas um dia de descontos: é um laboratório vivo do futuro do varejo.
O fenômeno começa nos anos 1990, na Universidade de Nanjing, quando estudantes solteiros transformaram os quatro números “1” (11/11) em um símbolo de celebração do próprio estado civil. Um festival simples, com encontros e trocas de presentes, que ninguém imaginava se tornar o embrião do maior evento de consumo do mundo.
A virada ocorre em 2009, quando o Alibaba percebe que o 11/11 tinha todos os elementos ideais para se tornar um grande festival comercial: apelo jovem, fácil memorização e perfeita sintonia com o crescimento do consumo digital. Na primeira edição liderada por Jack Ma, apenas 27 empresas participaram, mas o sucesso foi tão expressivo que, no ano seguinte, centenas de marcas aderiram. O crescimento ganhou força com uma combinação que se tornaria marca registrada: transmissões ao vivo com celebridades, lançamentos exclusivos, metas de vendas em tempo real, pagamentos instantâneos e logística ultrarrápida. O 11/11 virou o “Super Bowl do consumo”, com impacto medido em bilhões.
A escalada impressiona:
2013: US$ 5,7 bilhões
2017: US$ 25 bilhões
2020: US$ 74 bilhões
2024: estimativas de US$ 180 bilhões
Nenhum evento comercial global se aproxima dessa magnitude.
A cada edição, o festival se torna também o maior teste da infraestrutura digital chinesa. Centros de distribuição automatizados operam em ritmo industrial, com a Cainiao usando algoritmos sofisticados para prever demanda e organizar milhões de entregas. Em alguns hubs, mais de 70% das operações já são robotizadas. Nos pagamentos, Alipay e WeChat Pay processam bilhões de transações em um único dia, sem instabilidades.
No live commerce, apresentadores com status de celebridade transformam vendas em espetáculo, e algumas influenciadoras ultrapassam US$ 1 bilhão em faturamento em uma única live. No campo dos dados, cada clique vira informação capaz de alimentar algoritmos que recomendam produtos, ajustam preços e conectam consumidores e vendedores em milissegundos.
O Duplo 11 se transformou também em uma poderosa alavanca econômica. Para empresas, funciona como plataforma de lançamento de produtos com grande visibilidade, ferramenta de liquidação acelerada de estoques, porta de entrada para marcas estrangeiras no mercado chinês e impulsionador do cross-border e-commerce. Para governos e analistas, virou termômetro de comportamento do consumidor, renda disponível e confiança na economia.
O festival também revela o novo consumidor chinês: jovens urbanos com renda crescente, comportamento totalmente orientado ao mobile, busca por conveniência, velocidade e preço, valorização de marcas premium e consumo visto como entretenimento. Na China, comprar virou experiência.
Além disso, o 11/11 tornou-se vitrine global para testes de tecnologias antes de seu lançamento em massa. Nele surgem drones logísticos, sistemas de recomendação com IA generativa, avatares vendedores, ambientes de compra no metaverso e modelos avançados de integração entre físico e digital. É a demonstração anual de como a China combina escala, inovação e logística de forma única — e em velocidade continental.
O impacto também chega ao Brasil. Marcas brasileiras têm ganhado visibilidade no festival, especialmente alimentos industrializados, cosméticos, moda praia e fitness, utilidades domésticas e eletrônicos de nicho. Com mais de 900 milhões de consumidores ativos, participar do 11/11 se tornou a principal porta de entrada para o mercado chinês e seu ecossistema de live commerce.
O que o Brasil pode aplicar a partir da experiência do Duplo 11
A experiência chinesa não é apenas admirável: ela é profundamente instrutiva para o Brasil. O país pode aplicar vários elementos do modelo do Duplo 11 — alguns imediatamente, outros com planejamento mais amplo.
1. Logística como vantagem competitiva, não como custo
O Brasil poderia acelerar:
– automação de centros de distribuição;
– integração eficaz entre transporte rodoviário, portos e aeroportos;
– uso intensivo de dados para prever demanda e otimizar rotas;
– políticas públicas que valorizem eficiência logística como base do desenvolvimento.
2. Pagamentos digitais integrados ao varejo
O Pix foi um avanço, mas ainda há muito espaço para:
– crédito instantâneo integrado às plataformas;
– soluções antifraude baseadas em IA;
– interoperabilidade plena entre bancos, fintechs e varejistas;
– modelos de microcrédito vinculados ao consumo digital.
3. Profissionalização do live commerce
O Brasil ainda opera de forma dispersa, mas poderia:
– formar apresentadores profissionais;
– criar estúdios regionais de live commerce;
– integrar marcas, varejistas e plataformas;
– estruturar grandes eventos digitais nacionais.
4. Cross-border acessível a pequenas empresas
O país precisa transformar o pequeno produtor em exportador digital. Para isso:
– simplificar tributos de exportação de baixa escala;
– abrir hubs logísticos internacionais;
– oferecer programas de capacitação para micro e pequenas empresas;
– criar parcerias com plataformas globais.
5. Dados como motor do varejo
O Brasil ainda explora pouco o potencial dos dados. A experiência chinesa mostra a necessidade de:
– sistemas de precificação dinâmica;
– recomendação personalizada;
– análise preditiva de comportamento;
– integração entre físico e digital para gerar insights em tempo real.
6. Multicanalidade real
Na China, lojas físicas e lojas digitais não competem: se complementam. Esse modelo poderia ser adotado no Brasil em redes varejistas, shopping centers, marketplaces e até no setor de serviços.
O Brasil diante do futuro do consumo
O futuro do Duplo 11 aponta para intensidade ainda maior: mais IA preditiva, robotização logística ampliada, integração total entre online e offline, entregas sustentáveis e expansão do comércio internacional para países emergentes. O festival continuará sendo o laboratório global onde a China testa hoje o que o mundo adotará amanhã.
O Duplo 11 mostra como a combinação entre cultura, tecnologia e visão estratégica transforma algo comum em extraordinário. O que nasceu como uma brincadeira estudantil evoluiu para uma engrenagem bilionária que redefine o consumo global. E o Brasil, observando esse modelo, tem a oportunidade não apenas de aprender, mas de adaptar, tropicalizar e reinventar — construindo seu próprio caminho no varejo do futuro.
(*) Henry Uliano Quaresma é CEO da Brasil Business Partners e membro de conselhos de empresas e entidades empresariais. Atuou como Diretor Executivo da Federação das Indústrias do Estado de Santa Catarina (FIESC), onde participou ou coordenou mais de 90 missões empresariais internacionais em mais de 50 países, fortalecendo a inserção global da indústria.
Sua trajetória combina experiência no setor privado, no governo e no meio acadêmico, tendo atuado como professor universitário, executivo industrial e gestor público. É engenheiro, com MBA em Administração Global pela Universidade Independente de Lisboa, especialização em Marketing pela FGV e formação executiva em Estratégia e Gestão pela Wharton School (EUA) e pela INSEAD (França).
Autor de artigos e livros de referência, destaca-se a obra “O Fator China: Oportunidades e Desafios” (2024), amplamente reconhecida no meio empresarial, além dos e-books “Internacionalização Acelerada” (2025) e “Inovação na China” (2025).
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