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26/06/2025 15:37

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Caso Marisa Maiô

De quem é o quê? Inteligência artificial, publicidade e os novos dilemas da autoria, por Carlos Rocha dos Santos

Por Rita Lombardi

 Publicado 26/06/2025 15:25  – Atualizado 26/06/2025 15:37

Por Carlos Rocha dos Santos é Jornalista, Publicitário, Professor e Gestor de Imagens.
  • Por Carlos Rocha dos Santos é Jornalista, Publicitário, Professor e Gestor de Imagens. (Fotos: Divulgação)

 Marisa Maiô é divertida, debochada, tem bordões de auditório e o timing perfeito das redes. Criada por Raony Phillips com ferramentas como o Google Veo2, essa apresentadora digital se tornou viral no Brasil, somando milhões de visualizações e protagonizando campanhas publicitárias de grandes marcas, como Magazine Luiza - e até participações na TV Bandeirantes. Mas junto com o sucesso veio a polêmica: a emissora teria usado a personagem sem autorização ou negociação com seu criador original.

O caso reacende um debate urgente: afinal, quem é o autor de uma criação feita por inteligência artificial?

Em tempos em que vídeos hiper-realistas são gerados com simples descrições de texto, a questão da autoria entra em zona cinzenta. As ferramentas estão cada vez mais poderosas. A própria Google, com o Veo 2 e Veo 3, já permite criar clipes curtos em 1080p com qualidade cinematográfica. As imagens impressionam não apenas pelo realismo, mas pela estética e fluidez. Ah, o operador sequer precisa ser um especialista: basta escrever o que se quer ver.

Se antes era preciso contratar uma equipe, agendar uma sessão de fotos e alugar locações, hoje um único criador com uma boa ideia e um prompt eficiente pode gerar todo o conteúdo de uma campanha publicitária em minutos. Segundo levantamento publicado pela IstoÉ Dinheiro, uma sessão de fotos para uma campanha de óculos nos Alpes, que custaria 30 mil euros, foi feita com IA por meros 500. Agências como a Genera, com sede no Reino Unido, já oferecem bancos de modelos gerados por IA para uso em campanhas de moda. Sim, nenhum deles existe em “carne e osso”.

No Brasil, essa realidade não é distante. O Magazine Luiza transformou sua mascote virtual, Lu do Magalu, na influenciadora digital mais seguida do mundo, com mais de 30 milhões de seguidores. A Lu faz “publi”, participa de trends e representa outras marcas, tudo dentro de uma política própria de uso da personagem. A empresa garante que, por trás da Lu, há um time criativo responsável pela curadoria do conteúdo. Aí está um ponto importante: a intervenção humana.

É justamente a presença (ou ausência) dessa intervenção que divide especialistas sobre a proteção jurídica de obras criadas por IA. A legislação brasileira, regida pela Lei de Direitos Autorais nº 9.610/98, determina que apenas pessoas físicas podem ser autoras. O mesmo entendimento se aplica nos Estados Unidos, onde um tribunal federal rejeitou o pedido de copyright para uma obra criada pelo sistema DABUS, argumentando que a autoria requer uma mente humana.

Ou seja: a inteligência artificial não pode, hoje, ser titular de direitos autorais. Mas, então, quem opera a IA tem esse direito?

Segundo especialistas como o advogado Juliano Madalena, entrevistado pela CNN Brasil, sim — desde que comprove que teve papel criativo no processo, ou seja, que não apenas clicou em “gerar imagem”, mas elaborou prompts, dirigiu resultados, selecionou versões e definiu a identidade da criação. Neste cenário, a IA é apenas uma ferramenta, como um pincel, uma câmera ou um software de edição.

A discussão, no entanto, vai além do direito autoral. Ganha corpo também o debate sobre uso da imagem e da voz. Em 2024, a atriz Scarlett Johansson teve sua voz replicada em uma campanha com IA sem autorização. Ela, protestou publicamente. A cantora Anitta viu sua imagem e voz serem usadas em um chatbot e também se manifestou contra o uso indevido. Nos Estados Unidos, o estado do Tennessee aprovou a chamada Act ELVIS (Ensuring Likeness Voice and Image Security), que proíbe o uso não autorizado da imagem ou voz de qualquer pessoa em conteúdos gerados por IA.

No Brasil, tramitam propostas semelhantes. O PL 2.338/2023, por exemplo, pretende regular o uso de IA, prevendo que imagens, vozes e dados pessoais utilizados por sistemas automatizados devem respeitar os direitos da personalidade. O PL prevê, inclusive, remuneração para artistas cujas obras forem usadas em treinamentos de IA.

A indústria da moda tem reagido. Em 2024, a H&M anunciou a criação de gêmeas digitais de suas modelos humanas, com contratos que garantem pagamento pelo uso da imagem virtual. O mesmo ocorre com modelos como Alexsandrah Gondora, de Londres, que já licencia seu “avatar” para campanhas, enquanto ela mesma participa de outros trabalhos presencialmente. A agência The Digitals, especializada em criar clones digitais, estima que esses personagens renderão milhões às modelos reais nos próximos anos. Entretanto, desde que os contratos sejam justos e transparentes.

O mundo publicitário, nesse contexto, vive um novo desafio: usar a IA de forma criativa, sim, mas sem esquecer da ética e do reconhecimento a quem cria. Modelos como Shudu, Lil Miquela e Rozy já estrelam campanhas globais com tanto engajamento quanto modelos reais. Mas isso deve ocorrer com responsabilidade. Usar uma personagem, um rosto ou uma estética criada por outra pessoa — como no caso de Marisa Maiô — sem autorização, não é liberdade criativa, é apropriação indevida.

A pergunta, então, permanece: Marisa Maiô é só um meme ou o retrato do futuro da publicidade?

Caso Marisa Maiô
  • Caso Marisa Maiô (Fotos: Divulgação)

Parece claro que estamos diante de uma virada histórica. O conteúdo sintético, hiper-realista, escalável e acessível veio para ficar. Mas a criatividade, o estilo e o olhar que tornam um conteúdo relevante ainda nascem de mentes humanas. A IA pode gerar uma imagem. Mas quem tem sensibilidade para conectar essa imagem a um público, a uma cultura, a uma provocação social?

Autoria é mais do que execução: é visão, intenção, identidade.

O mercado publicitário, que sempre soube adaptar-se à linguagem do tempo, agora precisa também adaptar-se à responsabilidade desse novo tempo. As agências e marcas devem entender que a IA é um recurso poderoso, mas que, ao ser usada sem critérios ou sem contratos claros, pode violar direitos, destruir reputações e minar o valor da própria criação.

Sim, o futuro é híbrido. Mas que ele seja colaborativo, justo e transparente. Que respeite o profissional que cria, dirige, escreve e arrisca. Afinal, mesmo na era dos algoritmos, a ideia que emociona, que engaja, que transforma, continua sendo humana.

Carlos Rocha dos Santos é Jornalista, Publicitário, Professor e Gestor de Imagens.

  • Caso Marisa Maiô (Divulgação)

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