A pretensiosa abertura do mercado de gás natural em curso no Brasil acompanha a orientação da equipe de energia herdada pelo atual governo (2019-2022) do período Michel Temer (2016-2018) e vive a maldição de um ciclo de caráter eminentemente neoliberal. A primeira regra adotada pela nova política para este setor de commodity era de que a participação de novos ofertantes provocaria a queda de preços às distribuidoras e, por consequência, ao usuário final. Na média, o custo de suprimento representa por volta de 80% das tarifas (custos da molécula e transporte) praticadas ao mercado nos diversos Estados.

O "choque de energia barata" de Paulo Guedes, Ministro da Economia, foi apenas um jargão de estilo publicitário que nunca se constituiu em política capaz de dar conta do que sua manchete dizia. O gás que cairia cerca de 30% na anunciada promessa de 2019, teve sucessivos períodos de alta em 2021, como os reajustes de 40% em maio e 7% em julho, oscilando no curto prazo com os derivados de petróleo e recuperando rapidamente o período de queda de preços a partir da crise de março de 2020, que fez o custo dos barris desabar. Destaca-se ainda que as previsões apontam para novos (e mais fortes) reajustes, que colocarão o energético em risco de competitividade já a partir de janeiro de 2022 - uma distribuidora do Sul do país projeta em dezembro um aumento médio acima de 45%.

Talvez o primeiro ponto ignorado pelos "Chicago Boys" são as evidências dos ciclos econômicos longos e médios que incluem a ênfase da dinâmica da economia global e nacional, teorias colocadas pelo russo Nikolai Kondratiev e pelo francês Clèment Juglar, respectivamente. Os ciclos são o próprio capitalismo, com suas causas e efeitos, períodos recorrentes de ascensão, estagnação e recessão. As ondas foram batizadas pelo austríaco Joseph Alois Schumpeter de ciclos de Kondratiev, em justa homenagem ao russo que as descobriu, enquanto planejava a economia soviética, condenado por explicitar sobre prováveis novas fases ascendentes de crescimento na economia capitalista (como ocorreu no pós Segunda Guerra Mundial), depois da fase depressiva (1920-1948) do terceiro ciclo de Kondratiev. Esta realidade foi bem enfatizada pelo saudoso economista Ignacio Rangel.

Não se atentaram também que o Brasil de hoje é um país dependente de commodities e que, com isso, como explicita a UNCTAD, está de fato atrelado a um estado de dependência e um pouco distante de se livrar desta associação. Afinal, o país pouco investe em inovação e tecnologia e, nesses dois últimos ciclos políticos, tem colocado a ciência no fim da fila. Um país extrativo como o brasileiro exige um ecossistema de tecnologia no qual se desenvolva uma infraestrutura física (os investimentos em novas infraestruturas e na manutenção das atuais vêm perdendo força desde 2016) e institucional, para que esse novo universo prospere, como atesta a história, ao tempo que se promoviam substituições estruturais das importações na forma natural, artesanal e industrial como a reação verificada às fases depressivas dos ciclos longos.

O mercado livre de Guedes se dá com uma super-desvalorização da moeda nacional, o que revela talvez o único ponto de relativa lucidez da equipe econômica nacional. O gás natural no Brasil tem indexação atrelada ao petróleo do tipo Brent e ao dólar. Logo, uma queda de preço nos patamares que o câmbio se comporta no Brasil - conforme dados do Banco Central, o dólar em 2021 está acima de R$ 5,00 e chega a flertar com o patamar de R$ 6,00 e a desvalorização da moeda brasileira, no último período, é a segunda maior do mundo atrás apenas da Argentina - se recente da estabilização em valores quase negativos do barril do ouro negro, como aconteceu de forma episódica no auge da crise pandêmica, considerando que há uma forçosa indexação do gás nacional à moeda estadunidense, o que deve ser necessariamente revisto.

Analisando as exportações de Santa Catarina a partir do Plano Real (1994-2018), Gislene Daiana Martins e Isa de Oliveira Rocha, sem desconsiderar outros fatores internos e externos (como a crise financeira global de 2008 e as diversas políticas econômicas adotadas conforme a coalizão dominante no poder, além das crises de ordem política-partidária), apontam que as exportações crescem proporcionalmente às taxas de câmbio até um certo nível, de forma aproximada ao conhecido equilíbrio industrial que estaria convencionado em R$ 2,75. Da mesmas forma, quando as taxas cambiais se distanciam muito desse parâmetro, há como consequência uma importante mudança de comportamento das exportações.

Além da indexação do preço do insumo, assume-se também que existem importantes forças atreladas ao mercado de energia mundial, em especial o gás natural e o petróleo, instrumentos essenciais no xadrez da geopolítica e base para soberania energética de determinados países. Talvez justamente este ponto não foi despercebido, pois se vê certa subserviência, seja aos oligopólios e monopólios, e até mesmo há alguns países cêntricos que carregam ideologias similares aos ocupantes do governo de ora. Não à toa há a retomada do processo sistemático de enfraquecimento da Petrobras, sob o pretexto de uma desconcentração do setor, o que não seria possível nem em nível mundial, pois os grandes players dominantes ocupam seus espaços de forma confortável na dinâmica capitalista.

A estatal brasileira foi levada a pulverizar ativos lucrativos, sair da falsa condição de massa falida, conforme um dos premeditados adjetivos atribuídos pelos "lavajatistas", e se tornar uma expert em rentismo, que encaminha a maior parte dos resultados para o capital estrangeiro. Bate recorde de lucro e distribuição de dividendos, antecipa pagamento de dívidas, aumenta a importação, adormece refinarias e convive bem com aquilo que a sociedade brasileira foi catequizada a apoiar: a empresarização das estatais, pois elas precisam ser viáveis e lucrativas servindo aos acionistas e, se sobrar alguma coisa, talvez ao objetivo nuclear das concessões de serviços públicos. Quem concorda também paga a conta com a explosão dos preços da cesta básica, que passa dos R$ 700 no país, a informalidade do emprego que se aproxima de 50% da população ativa, uma nova realidade da inflação, com preços de combustíveis em patamares recordes e a potencialização daquilo que sempre foi tão caro ao Brasil: a sistemática desindustrialização da sua economia, agora dada de forma mais acelerada.

Destaca-se que este processo é produto indissociável do período FHC (1995-2002), quando se abriu a Petrobras ao capitalismo financeiro com a sua introdução na Bolsa de Nova Iorque, provocando a entrada de acionistas estrangeiros para dirigir uma empresa até então de forte caráter estatista e voltada à soberania nacional. O DNA passa a ser financeiro e não mais industrial, o que foi enfrentado e interrompido a partir de 2003 com, inclusive, a maior capitalização de uma organização (seu valor cresceu 13,54 vezes em oito anos) na história mundial do capitalismo, período (2003-2010) que a Bovespa saltou suas movimentações de R$ 200 bilhões (14 mil pontos) para R$ 2 trilhões (70 mil pontos).

Neste Novo Mercado de Gás (NMG) proposto, denominado como de dupla personalidade pela própria associação do setor que em seus recorrentes discursos revela uma clara luta de interesses, esqueceram que a Petrobras teria papel fundamental nos arranjos, que ela seria a empresa com maior capacidade de compreender os anseios dos consumidores e do mercado nacional, que o compromisso social só poderia se dar a partir dela e que certa soberania passaria pelo seu movimento de proteção. Ignoraram também que, para um efetivo processo de abertura, as infraestruturas devem possuir a capacidade de dar conta do forte processo de crescimento proposto com novos investimentos, embora o que se constante na prática é um gargalo no setor de transporte de gás, problema que não se soluciona no curto prazo com a realidade de estagnação regulatória, e também que os arranjos legais não parecem estar na ordem do dia do agente nacional responsável.

Ao mesmo tempo que o capital financeiro e estrangeiro absorve ativos desenvolvidos com bastante esforço (investimentos de alto risco assumidos pelo caráter estatal da época) pela grande empresa da história do Brasil para fazer o país crescer, que atualmente é tida como um problema que se soluciona por meio das antigo discurso privatista dentro do abstrato, há diversas barreiras estruturais para o setor, em especial às associadas ao acesso, escoamento, processamento e integração dos sistemas de transporte de gás. Há forte restrição de capacidade no trecho sul do Gasoduto Bolívia-Brasil o que sacrifica o crescimento de ramos como o cluster cerâmico catarinense e o atraso na agenda de regulação para real abertura de mercado pela ANP, que no curto prazo incentiva a importação do insumo e coloca as distribuidoras estaduais numa posição de assistir uma debandada de ofertantes de suas chamadas públicas para aquisição de gás novo quando passam a lidar, forçosamente, com supridores intermediários onerando em mais uma camada o sistema de oferta. A venda de gás boliviano, que, na última década se revelou como o mais competitivo ao mercado nacional, vem caindo a cada período, chegando a operar próximo de 60% dos volumes que eram importados em 2018 e, atualmente, não apresenta opções de oferta firme ao mercado.

O Gás Natural Liquefeito (GNL), substituto do gás boliviano e protagonista enquanto não se soluciona o escoamento do gás do pré-sal, tem elevada demanda dos mercados europeus e asiáticos com seus invernos rigorosos e o crescimento da produção, pressionando ainda mais os preços. Fato que se associa à crise hídrica brasileira (não só associada ao período de seca, mas como também do sucateamento com mesmas premissas do setor elétrico nacional) que espera que o gás natural seja um backup para manter as térmicas em operação - segundo a S&P Global Platts Analytics, o Brasil se tornou, em outubro último, o maior importador de GNL do Estados Unidos, superando Espanha, Coreia do Sul, China, Turquia e Holanda e saltou de sétimo exportador em 2020 para quarto neste ano.

Na ordem do dia têm-se ainda a necessidade de acelerar o processo de transição para as chamadas energias renováveis, com um primeiro movimento exigindo um deslocamento mais forte do carvão da matriz energética para atender às necessárias metas ambientais. Contudo, países continentais no COP-26, recentemente em Glasgow, revelaram que este movimento não se dará na velocidade proposta pelas Nações Unidades e não assinaram (Brasil, China e Estados Unidos) o acordo colocado para zerar energia à base de carvão. Ou seja, haverá ainda na matriz energética mundial uma forte presença do carvão e dos fósseis e seus derivados.

Além da incapacidade de percepção sobre o mercado e a economia, a conjuntura também afeta a realidade atual do setor completando a receita da armadilha do NMG que surge no período descendente da economia global e com a forte queda dentro do ciclo interno brasileiro que não permite nem mais a realização de um "voo de galinha". O que se faz no Brasil é ampliar o descontrole de um setor já bastante autônomo e de destacada força global, tendo como resultado, através desta contraditória e insuficiente abertura, uma posição ainda mais refém dos interesses centrais, bem distante da soberania e mais longe dos objetivos sociais e produtivos do país.



Leonardo Mosimann Estrella
Mestrando na UDESC, voluntário no Instituto Ignacio Rangel e empregado público

José Messias Bastos
Professor Associado da UFSC e Presidente do Instituto Ignacio Rangel